Ínfimas ações não nos absolvem

Maíra Dvorek
3 min readFeb 24, 2021

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“Nada pode ser mudado enquanto não for enfrentado*“

Em se tratando de racismo, o branco ocupa um lugar permissivo. Ao
adquirir a consciência da obrigação de ser antirracista, ele não torna isso
uma prática ampla e diária. Gerar empregos, se recusar a ir ao clube
frequentado só por brancos é a ponta de um iceberg muito maior. Um dia,
ouvi um conselho à minha observação: “Os pretos que estão no lugar
onde você está, estão se divertindo ou trabalhando?”. Percebi que eu,
amante dos escritos de James Baldwin, fã de jazz, neta de judeus e pretos,
anulara qualquer tipo de reflexão apoiada na concretude da minha pele
branca. Não tenho eu adotado a prática diária do não racismo. Quando
me dou conta disso, sinto uma vergonha que não absolve e nem zera essa
herança repulsiva. Minha consciência política se dá pela metade. Sei do
racismo, li Luther King e aprendo com Spike Lee. O que eu faço com tudo
isso? Nada. Por ser judia e reconhecer semelhanças nos holocaustos a que
os povos africanos e judeus foram submetidos e não ser assim de todo
má pessoa, sempre me senti absolvida do rótulo de racista. No entanto,
um sentimento de culpa sempre me atormentou. Não a culpa daquele que
é autor, uma culpa bem pior, daquele que é conivente. Esse abismo entre
a admiração do conceito da luta antirracista e sua prática diária me
fizeram reconhecer esse desastroso lugar de conivência. Ao assistir a
morte de George Floyd chorei. Me senti feliz ao ver os incêndios e
manifestações. Achei que essa alegria se atribuía a uma sensação de
vingança. Agora, ao escrever, vejo que não era isso. Era sentimento de
absolvição. O grito daqueles manifestantes brancos e pretos era meu
também. Eu saíra do lugar de conivência. Mas será que não sou conivente
mesmo? O que eu fiz na prática após a morte de João Pedro? Assinar
abaixo assinado contra a federalização do caso Marielle ? É preciso que o
branco não sinta que essas ínfimas ações o absolvem. Nós brancos, temos
uma dívida e o fato de ela ser ancestral, faz com que não nos cause
estranheza. O racismo diário, feito de pequenas ações, excluído da
barbárie explicita não nos comove. Praticamos “a banalidade do mal”
conceituada por Hanna Arendt. Nossa conivência nos equipara aos
algozes dos campos de concentração que no julgamento de Nuremberg
diziam “só cumprir ordens de superiores“ .O leitor branco concluirá que
estou exagerando. Mas o que aconteceria se o anti racismo fosse uma prática diária de todos que se julgam não racistas? E se saíssemos do lugar
de somente assinar manifestos? O que há na luta contra o racismo que
ameaça tanto o branco? Alienação como desculpa não me convence.
Falta de empatia também não.Com todo respeito aos meus irmãos
brancos, concluo que todos que silenciam se tornam racistas. O fim do

racismo não é uma luta restrita aos pretos. É uma luta de uma mãe branca
que ensina ao seu filho que Zumbi é um herói. E a exemplo do líder
quilombola, a luta não deve se restringir ao campo das ideias.
Maíra Dvorek, atriz e aprendiz de escrita.
*James Baldwin, escritor

esse texto foi publicado pelo Jornal FOLHA DE SÃO PAULO em 6 de junho de 2020

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Maíra Dvorek

Photobiografias e Tímidos Escritos / brasilian artist: stage, frames and letters. linktr.ee/mairadvorek